Dois jovens desaguaram no Porto. Não se conheciam, mas ambos traziam a mesma aspiração nas malas: tornarem-se atores. Cruzaram caminhos com uma matrícula no ESMAE. Não seria o único cruzamento. O segundo foi quando partilharam um pequeno apartamento na baixa do Porto.  O local tornou-se um ponto de encontro para noitadas, regadas com copos, música, filmes e muita, muita discussão de ideias. Gerou-se uma cumplicidade que ultrapassou os anos da faculdade e perdurou no tempo. Vieram outras fases de vida, empregos, casais, caixas de cartão empilhadas em carrinhas de mudanças, novas moradas, novos quotidianos. Os encontros tornaram-se cada vez mais espaçados, os serões sacramentais a tocar guitarra ou a fazer maratonas de cinema foram-se diluindo e o hábito acabou por ser envergado pelo desencontro. Mas a cumplicidade permaneceu. Resistiu ao tempo, ao espaço, à distância, à erosão da memória. Talvez para a manter imune a essa erosão, talvez meramente inspirado, um dos jovens, António Parra, decidiu passar para o papel essas vivências e essas conversas e desconversas da vida. Começou a escrever de forma espontânea, sem saber o que ia sair dali. Podia ser uma peça de teatro, um conto, uma curta-metragem. À medida que as páginas avançavam, os desígnios iam-se clarificando. Acabou por adquirir a forma de curta-metragem.
Reuniu uma equipa e meteram mãos à obra. No entanto, já na fase de pós-produção, concluíram que o formato não funcionava, o argumento era demasiado longo para uma curta-metragem. Decidiram reformular o projeto. “E porque não uma série?”, alguém terá perguntado. A questão agradou. Foi respondida, estudada, estruturada, colocada em andamento. A ideia era transmiti-la na internet, sem objetivos comerciais. O verdadeiro desígnio era criar algo que fosse inovador, diferente de tudo o resto, e partilhar com o máximo de pessoas possível. A criação aconteceu e a partilha começa amanhã, com a estreia do primeiro episódio de “A Velhinha que Fuma”, uma web-série completamente independente. O argumentista, António Parra, é também um dos actores e contracena com Afonso Santos, ambos nomes habituais nos teatros da Invicta. Francisco Lobo assume as rédeas da realização e a Anexo 82 a distribuição.

Frame Victor 2

A série retrata um dia de ressaca entre dois amigos de longa data, Ivo e Mauro, que costumavam viver juntos quando eram estudantes. Estão com uma direta em cima, ressacados e ligeiramente embriagados por nostalgia. A ressaca é a dobrar. Para além da alcoólica, prevalece uma ressaca de quotidiano, uma espécie de saudosismo árido de algo que existia e que agora – embora ainda exista – está desvanecido, diferente, desbotado como a capa de um livro que permaneceu demasiado tempo ao sol. E é encantadora a subtileza como ambos tentam hidratar essa convivência antiga, seja com diálogos hilariantes, pretextos acanhados  ou desconversas construtivas. Até a forma como se insultam é recheada de cumplicidade. O trabalho de ambos os atores é notável nesse ponto, há uma química muito interessante que nos mantém colados ao ecrã, mérito dividido com a própria dinâmica dos diálogos, os episódios passam a correr e é frequente os sorrisos acompanharem a corrida. É agradável constatar que o desígnio da inovação foi atingido, é visível uma preocupação em apresentar, de facto, um produto diferente, divertido, enérgico, mas nem por isso desprovido de conteúdo e pequenos detalhes e significados que se vão descortinando à medida que vamos conhecendo melhor o duo.
Desde o genérico, a fotografia, a qualidade das transições, à própria banda sonora (de autoria de uma banda portuense – Corona) que é absolutamente deliciosa e muito bem inserida na ação (todo o minuto cinco é sublime), tudo parece ter sido gizado de forma meticulosa, que se compatibiliza muito bem com a forma espontânea e descontraída como decorre série.
Há cumplicidades cujas fronteiras são complicadas de definir, “A Velhinha que Fuma” não as tenta definir, mas exprime-as muito bem. Se a encontrarem, seja na rua, num miradouro ou no Youtube, não lhe cravem um cigarro, mas deixem que ela vos crave uma dezena de minutos. Grannies know best.

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