É Verão há três dias, a manhã ainda está a começar e já estão cerca de 30 graus. Mas só de passar em frente da entrada da gruta sente-se uma aragem invernal. Gelada, arrepiante. “Nem imagino como será lá dentro”, penso. Vou descobrir dentro de instantes, mas não da maneira ideal. Deixei a headlamp na mochila, na mala do carro, que está a uns bons 20 minutos a pé, uma distância que não me apetece percorrer sob este calor abrasador. A poucos metros da entrada, a claridade desvanece-se na escuridão total. “Como raio vou entrar ali?”.

 

 

 

Decido ir avançando devagar, usando os disparos do flash da máquina fotográfica para ir clareando o caminho. O efeito é-me familiar. Vi algo do género num filme, não me lembro especificamente qual, mas sei que era de suspense e essa cena antecipou um susto do caraças. “Talvez não seja uma ideia assim tão brilhante, afinal”. As rochas estão cobertas de uma espessa e húmida camada de musgo. A cada passo, o ar é mais frio. E, ao mesmo tempo, abafado. Há um cheiro metálico, azedo. Decido não avançar mais. “Um dia volto, devidamente equipado, e vou até ao fim”, penso, enquanto volto para o sol. Na realidade, não acabei de sair de uma gruta. É uma das minas abandonadas de volfrâmio de Regoufe.

 

Tenho estado a manhã toda a explorar estas ruínas, deliciado com o silêncio que envolve todos estes edifícios nus de granito. Nos anos 40 ele não existia. O quotidiano era preenchido pelo ruído incessante das picaretas, dos compressores e das britadeiras. Havia mais de mil homens aqui a trabalhar, a extrair o minério que abastecia o armamento do exército aliado na II Guerra Mundial.

Na altura, o volfrâmio era muito valorizado porque era um metal robusto e com um alto ponto de fusão, perfeito para fabricar mísseis, granadas e outros explosivos. O nome deriva do velho germânico wolf Rahm, que significa “espuma de lobo”. Os mineiros contavam histórias sobre isso. “A extração disto consome tanto estanho que até parece o apetite voraz com que um lobo devora uma ovelha”.

 

Era um minério abundante nesta região e Portugal aproveitou isso, juntamente com a sua neutralidade no conflito, para fornecer ambos os lados da barricada. Esta mina era concessionada a ingleses. A alguns quilómetros de distância, na Mina de Rio de Frades, estavam os alemães.
Eram inimigos no campo da batalha, mas aqui era comum confraternizarem e até dividir despesas na criação de estradas e acessos.

 

 

Mas não havia só ingleses. A esmagadora maioria dos habitantes de Regoufe trabalhava aqui. Um trabalhador rural ganhava cerca de sete a oito escudos por dia. Um mineiro recebia entre 18 e 20. Não era uma escolha muito difícil e até os mais novos se entregavam a ela.
Aquilino Ribeiro descreve-o no seu livro “Volfrâmio” (1944): “Rapazotes, com boinas de homem, sem cor à força de usadas, a carne tenra a espreitar das camisas cheias de surro e em frangalhos, vinham baldear no monte o carrinho atestado de calhaus em que coruscavam com o sol as pirites”.

As pirites eram lixo, o “ouro dos tolos”. Já o volfrâmio era chamado de “ouro negro”. Em 1942 valia 150 escudos o Kg. No pico da guerra, chegou a mil escuros o Kg. Por isso, muitos arriscavam a sorte fora das minas. Andavam “à pilha nas montanhas”, que é como apelidavam a extração clandestina de minério. “Esta casa foi construída com dinheiro do volfrâmio” é uma frase típica de se ouvir em Regoufe ou nas aldeias próximas.

 

Por isso, por mais dura que fosse esta profissão, não faltavam voluntários para passar os dias nas entranhas da terra. Oito, nove, dez horas agarrados a baldes e picaretas, desejosos por chegar a noite para lavarem a cara da fuligem, da escuridão e do frio destas minas e rumar ao calor das suas mulheres.
Os ingleses não tinham essa sorte. Este era o seu lar. Matavam as saudades de casa como podiam: chá, bridge, gin, vinho. Até havia um campo de futebol. “Terão havido aqui partidas entre ingleses e alemães?”, questiono-me, enquanto o atravesso. Ainda existem as balizas e até parte das suas redes, feitas de arame.

 

 

Entro em todos os edifícios que encontro e tento imaginar o seu propósito. Quais seriam os dormitórios, os armazéns, os escritórios, as cantinas? Para que serviriam as várias máquinas enferrujadas que ainda se encontram no recinto? Tento encontrar as respostas na imaginação. Não faço ainda ideia que dentro de um par de horas, vou conhecer uma mulher para quem estas minas eram como um recreio na infância.

 

 

A exploração destes espectros de pedra deixa ser silenciosa. Há um ruído a ecoar pelas ruínas. Vou à janela do edifício e vejo um grupo de cinco jovens, três rapazes e duas raparigas. Estão longe, mas o som propaga-se por estas velhas minas como se elas fossem um anfiteatro romano. Um deles ficou para trás, a fotografar o mais “intacto” dos edifícios. Está também a filmar e o tempo com que prepara, cuidadosamente, cada plano e cada enquadramento, permite-me alcançá-lo.

 

 

São alemães, estavam a planear fazer a caminhada de duas horas até à aldeia deserta de Drave, mas as raparigas estão cansadas, à partida vão adiar para o dia seguinte. Desconhecia as “minas alemãs” e fica entusiasmado quando lhe falo delas. “That’s a great plan B for today”, diz-me, enquanto se despede e se dirige, em passo acelerado, ao encontro do resto do grupo. Fico a observá-lo enquanto os aborda, a falar e a gesticular, possivelmente a partilhar o plano B com eles. “Óptimo”, penso para mim, com um sorriso matreiro. “O plano A é só para mim”.

 

Continua no texto “Uma noite com Drave só para mim”
Nota: No nosso Facebook foi publicado um álbum com imensas  fotografias das ruínas que não integraram este artigo. 

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