Visivelmente incomodado, o Sr. Preston – autor de uma coluna de opinião num diário americano – entra no escritório do seu advogado, Sr. Barnes, situado no centro de Washington. Em cima da secretária de mogno há uma agenda-calendário com o número 1959 no cabeçalho. Preston senta-se e vai direito ao assunto.

 

– Na minha coluna da semana passada mencionei um banqueiro famoso de Nova Iorque, por existirem indícios de ligações promíscuas com o poder político. Por ele usar a sua influência com diversos senadores para pressionar a aprovação no congresso de legislação que o beneficia.

– Ou seja, tráfico de influências e corrupção – diz o advogado.

– Exatamente. Mas a parte irónica é que ele não tentou rebater essas questões. Nem sequer se debruçou sobre elas. É como se elas tivessem deixado de existir. Limitou-se a acusar-me de antissemitismo.

O cliente nem reparou que o advogado esboçara um ligeiro sorriso e prosseguiu.

– O absurdo desta situação é que eu nem sequer sabia a religião dele. Apenas apontei ligações ilícitas e promiscuas de negócios de um cidadão americano. As ligações estão lá, apontei factos. Curiosamente, foi ele a inserir a sua religião no debate. Se alguém usou uma religião do ponto de vista discriminatório, ou seja, introduzindo-a como o motivo ou a causa de algo, foi ele. É quase paradoxal, mas ele está a acusar-me do que ele próprio fez. Consegue compreender isto?

– Consigo, perfeitamente, Sr. Preston.

– Ótimo! Então e como podemos agir judicialmente?

– Na verdade, Sr. Preston, a minha sugestão é que não o faça. Aliás, sugiro que não faça nada.

– Como assim? Então ele está a denegrir-me, a vilipendiar-me de forma gratuita sem qualquer fundamento na praça pública, a rotular-me de algo que eu não sou… e está a dizer-me que eu não posso fazer nada?

– Pode fazer, Sr. Preston. O meu conselho é que não o faça, porque socialmente pode ter repercussões negativas para si.

– Repercussões negativas? Então o ilícito é dele, em prejuízo da própria sociedade, e as repercussões sociais negativas são para mim?

– Sr. Preston, o meu papel – ou a minha vocação, se o posso dizer – não é apenas conhecer um amontoado de leis. É saber ler a atualidade e usar essa leitura em benefício dos meus clientes. Lembre-se que a guerra e toda a tragédia do holocausto, tudo isso foi há poucos anos atrás. As feridas desse conflito e, particularmente, do povo judeu são ainda muito frescas.

O advogado é imediatamente interrompido pelo cliente.

– Então, mas ele é que está a usar a desgraça do próprio povo dele como um artificio a seu benefício! Está a explorar o próprio passado trágico para proveito próprio! A hipocrisia deste comportamento é óbvia e a pessoas vão percecioná-la facilmente.

– Sr. Preston, palavras como “óbvio” e “perceção”, neste momento, têm uma natureza menos pragmática e que se aproxima mais da ambiguidade. Essa natureza não é tão expectável como julga e já lhe explico porquê. Mas primeiro, tem de perceber uma coisa.
Os EUA orgulham-se da sua liberdade, incluindo a religiosa, que garantiram ainda no século XVIII na Primeira Emenda da Constituição. Temos protestantes, católicos, mórmons, ortodoxos, só no cristianismo temos centenas de variações autónomas. Temos as igrejas budistas de novo em força no país, o movimento rastafári e o culto a Jah está cada vez mais espalhado e só em Nova Iorque há seis comunidades em cinco bairros. O hinduísmo também está a ganhar popularidade e já se começa a falar na criação de uma organização dedicada ao culto a Krishna. Por amor de Deus, foi até criada uma religião chamada Cientologia há meia dúzia de anos.
Este pluralismo religioso é indissociável do nascimento desta nação.

– Muito obrigado pela lição de História, Sr. Barnes! Eu sou 100% defensor disso. E tenho amigos de várias religiões. No entanto…

– Desculpe interromper, Sr. Preston, mas não pode dizer isso. Nem se atreva a escrever esse argumento na sua coluna do jornal. Isso é conotado como uma espécie de subterfugio do preconceito, uma, digamos, desculpa esfarrapada para a descriminação. E será discriminado se o fizer.

– Está a brincar comigo?

– Não estou não, considere-se alertado.

Perante a estupefação no rosto de Preston, o advogado prossegue.

– Voltando ao seu assunto, lembre-se que vivemos num período onde a perseguição ao povo judeu está ainda muito presente na mente das pessoas. Aconteceram coisas horríveis, inimagináveis. O discurso relativo a tudo o que tem a ver com este assunto tende a pautar-se mais pela emoção do que pela razão.

– Mas não fui eu que introduzi esse assunto! – Grita Preston, irritado.

– Eu sei, Sr. Preston. Estou apenas a alertá-lo que, tendo esse assunto sido introduzido, a emoção vai apoderar-se da discussão. Não importa quem o introduziu, com que validade ou propósito o fez. A reação emocional ao assunto será como uma bola de neve que vai dominar a discussão. E vai dominar a perceção da discussão, está a perceber o que lhe estou a dizer? Não deve presumir que vá prevalecer o discernimento ou o distanciamento factual. Pode conseguir que estes prevaleçam nos tribunais, nas no juízo público o Sr., inevitavelmente, será condenado.

– Então, deixe-me ver se percebi. Temos um individuo que usa de forma vil e manipuladora essa perseguição aos judeus para benefício dos seus interesses egoístas, ou seja, usa a própria religião como escudo que visa deixá-lo imune à critica e à repreensão.

Preston abre os braços num gesto de pasmo e prossegue.

– Se alguém o acusar de algo, não está a acusar um cidadão por um crime ou ilícito específico. Está, automaticamente, a perseguir um judeu?! É isso?

– Não posso sancionar as suas palavras, Sr. Preston. Mas também não as posso desmentir, se me percebe. Volto a dizer, são os tempos em que vivemos.

– Ou seja, vivemos num tempo onde um escudo religioso pode ser usado de forma ilegítima para relativizar crimes ou atitudes condenáveis?

O advogado ia responder, mas Preston antecipa-se.

– Mas isso não é, precisamente, usar a religião de forma discriminatória? Quem é que introduz a religião no discurso? Quem é que estabelece, nem que seja à força, uma relação de causa efeito entre a crença religiosa e determinada atitude de um cidadão?

– Sr. Preston, mais uma vez não o vou desmentir. Mas não o aconselho a levantar essas questões na sua coluna de jornal. Não lhe vai ficar bem. Lembre-se do que lhe disse há instantes atrás. A opinião pública vai virar-se contra si. Por mais estranho que lhe possa parecer, há momentos em que os factos, as questões e a própria razão se tornam secundários. Se a palavra “antissemitismo” entra na equação, é melhor esquecer o exercício, mesmo que esteja convicto que o consegue resolver. Recolha o seu caderno quadriculado e o seu lápis, arrume-os na sua pasta e não pense mais nisso. Encare isso como uma autopreservação da sua reputação.

– Mas não consegue perceber como tudo isto é fundamentalmente errado?

Barnes vira-se para a estante atrás de si e aponta para uma velha ampulheta, na expetativa que o auxílio visual possa ilustrar melhor mais uma analogia sobre o tempo, as tendências e idiossincrasias das atualidades, o seguidismo cego e ebuliente das causas e as vicissitudes da opinião pública.

– Está a ver aqueles grãos? Não estão ali só para contabilizar os honorários dos minutos deste atendimento. Estão ali também para me lembrar que é meu dever aconselhar os meus clientes de acordo com a perceção que tenho da forma como eles vão escorrend…

– Espere aí, está a dizer-me que vou ter de pagar por esta sessão?

– Naturalmente, Sr. Preston!

 

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