“Onde começa a história? (…) Talvez com as fotos da AP, com os monges a imolar-se em protesto nas ruas de Saigão. Tive noção que ia haver uma guerra naquele lugar, que se ia tornar uma guerra americana, uma guerra da minha geração e eu ia querer estar lá para a cobrir”.

Foi com estas palavras que Joe Galloway iniciou o primeiro dos muitos capítulos da sua reportagem da Guerra do Vietname, que intitulou “Diários de um repórter do Inferno”. Li-os vezes sem conta. Tal como biografias de Robert Capra, reportagens de Walter Cronkite e Richard Boyle, imagens de Margaret Bourke-White, Steve McCurry e Catherine Leroy. Até relatos de repórteres de guerra “improváveis”, como Winston Churchill (cobriu três guerras, Bóer na Africa do Sul, russo-japonesa e ítalo-turca), Hemingway (guerras turcas, guerra civil espanhola e II Guerra Mundial) e Edgar Rice Burroughs, escritor que, três décadas depois de criar o Tarzan, estava no Havai na altura do ataque a Pearl Harbor e, aos 69 anos, fez a cobertura total do evento.
Tenho duas prateleiras cheias de livros sobre o tema, incluindo vários repórteres de guerra portugueses, como Mário de Carvalho, Carlos Fino, Luís Castro, José Rodrigues dos Santos, entre vários outros.

Catherine Leroy, fotojornalista parisiense a acompanhar um pelotão americano na Guerra do Vietname (1966)

 

Filmes então, devorei tudo o que há sobre o tema. Já devo saber de cor o “Salvador”, do Oliver Stone e o “The Killing Fields” do “Roland Joffé”. Já o “A Mighty Heart”, de Michael Winterbottom e que conta a história de Daniel Pearl, nunca mais tive coragem de rever desde que o vi nos cinemas. Um dos últimos que vi, em 2010, chama-se “The Bang Bang Club” (realizado por Steven Silver), a célebre alcunha que um grupo de fotojornalistas recebeu na arrojada cobertura dos conflitos violentos do fim do Apartheid na África do Sul, na primeira metade dos anos 90.

 

O actor James Woods numa cena do filme “Salvador” (1986), de Oliver Stone

 

A paixão pelo tema é fácil de explicar. Em maior ou menor escala, acho que ela existe em qualquer estudante de jornalismo / jornalista. Se formos instruídos devidamente, nas universidades e nas redações (e eu tive a sorte de o ser), cedo aprendemos que a reportagem é o género nobre do jornalismo. E que, para conseguir enfrentar essa Tarefa (capitalização deliberada), não basta ter talento de escrita (ou na fotografia/vídeo). Ensinam-nos que é preciso possuir uma multiplicidade de atributos que, quando reunidos e conjugados, transformam um jornalista num repórter. Desde a capacidade de farejar histórias onde mais ninguém as vê e detetar o respetivo interesse humano, conseguir estruturar o trabalho narrativamente, ter a paciência e a fome da pesquisa, dominar o artificio estilístico que permite conjugar informação com prazer de leitura, entre inúmeros outras características, incluindo, talvez, a mais fulcral de todas: a capacidade de ser largado de “paraquedas” seja onde for e, por mais pernicioso que seja esse ambiente, desenrascar-se e regressar com a história.

 

O fotojornalista Robert Capa junto a um bombardeiro americano (1945)

 

Se reunirmos essa consciência – e apetência –  a um forte sentido de missão e a um desejo tão louco quanto altruísta de dar voz aos que sufocam na mudez do seu sofrimento na colateralidade dos conflitos,  percebemos a razão pela qual ser  repórter de guerra é uma espécie de auge de carreira no jornalismo.
Embora seja relativamente tácita, há uma valoração e um respeito na classe que distingue estes profissionais e os eleva acima dos restantes colegas comuns mortais. E prevalece um desejo, talvez tácito também, no âmago de quase todos os jornalistas de um dia poderem vestir essa pele e esse colete com a indicação PRESS em letras garrafais e carregarem essa medalha ao ombro das suas carreiras. Eu também o senti e nunca o realizei. Mas tive a sorte de, ao longo do caminho, poder conhecer e falar com alguns que o realizaram.

Um deles chama-se Zoran Filipovic, fotojornalista conhecido como “Zoro” na Agência Magnun e que foi o primeiro a entrar na cidade devastada de Petrinja (Croácia central) e captar as primeiras imagens da Guerra entre a Croácia e Sérvia, em inícios da década de 90. Uma conversa que se transformou numa entrevista que, por sua vez, se transformou numa reportagem que na altura publiquei nas páginas do ‘O Primeiro de Janeiro’ com o título “Morte e Verdade a Preto e Branco” (e que, em breve, irei republicar aqui).

Mais recentemente, tive a sorte de estar presente num evento onde encontrei um dos mais famosos fotojornalistas de guerra portugueses: João Silva, um dos membros do célebre Bang Bang Club. Assisti à sua masterclass sobre fotojornalismo e reportagem e ouvi as suas histórias. E são tantas. Tantos países, tantas guerras, tantas recordações que ele tenta, em vão esquecer. Emocionei-me com as palavras de um homem que pagou um dos preços mais caros pela dedicação ao ofício. Logo ali, resolvi que ia escrever com elas. Sobre elas. Por elas.

Dentro de quatro dias, “João Silva: Confissões de um membro do Bang-Bang Club”, aqui no Crónicas da Madrugada.

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