É comum dizer-se que aqueles que têm ideias demasiado avançadas para serem aceites no presente nasceram à frente do tempo. Philip K. Dick incorporou essa máxima, literalmente. Nasceu seis semanas prematuro. No entanto, a sua vida e a sua obra mostram-nos que, contrariamente ao que é dito pelos calendários e pelos relógios, talvez todos os acontecimentos ocorram na altura certa. Pelo motivo certo.

O escritor passou a infância em São Francisco e desde cedo teve a companhia da contrariedade. Desde a morte de uma irmã gémea, a quem apelidaria de “gémea fantasma” nos seus livros, ao divórcio dos pais aos cinco anos. Ele próprio viria a casar cinco vezes, o mesmo número de décadas que iria viver. Foi estudar para a Califórnia, onde se apaixonou por Psicologia e Filosofia. Devorou os livros de Platão e Carl Jung, pesquisou, experienciou, desenvolveu e aprimorou uma natureza inquisitiva sobre a vida e a essência das coisas. Ao longo da vida lidou com a ansiedade e outros problemas de saúde, onde o recurso a anestesias e anestésicos esteve na origem do que apelidou de “experiências transcendentes”, que o fizeram mergulhar na metafísica. A mesma metafísica que está no DNA da sua extensa obra. Escreveu 121 contos de ficção científica ao longo das décadas de 50, 60 e 70, que eram vendidos a revistas de género por poucos dólares. Tão poucos que nem na idade adulta conseguiu afastar-se da sua companhia de infância. O seu carro foi apreendido pelas finanças, não raramente as suas contas mensais eram pagas por familiares e foi um colega escritor que lhe ofereceu uma máquina de escrever eléctrica, quando as manuais se tornaram obsoletas. Uma vida de pobreza que durou até ao seu último suspiro. À luz do presente, muitos classificariam a sua vida como uma vivência falhada, desprovida de mérito e sucesso. Mas os desígnios do destino são sempre percepcionados de forma limitada pela lâmpada do presente. É no candeeiro do futuro que o espectro de luz ganha dimensão suficiente para iluminar tudo o que antes fora invisível à percepção superficial.

Nas décadas seguintes, o seu trabalho serviria de inspiração para inúmeros escritores e cineastas. Foi considerado  o “Shakespeare da Ficção Cientifica”.  São poucos os filmes do género que brilharam no grande ecrã onde os autores não tenham admitido ter sido influenciados pelo legado de Philip K. Dick. São tantos os testemunhos que percebermos que o escritor não nasceu cedo ou tarde, mas viveu na altura certa para inseminar a influência geracional em todo um género cinematográfico. Para além desse efeito influente noutras obras, 12 contos do escritor foram eles próprios adaptados ao cinema. Hoje, alguns desses filmes são autênticos clássicos, como “Blade Runner”, “Total Recall”, “A Scanner Darkly”, “Minority Report”. De todos esses, talvez seja uníssona a estranheza por eu escolher um bem menos conhecido para debruçar a minha atenção na segunda metade do texto. Também aqui, mais uma vez, essa luz que liquefaz interrogações e exclamações, acender-se-á mais à frente.  

 O filme é “ The Adjustment Bureau” (Os Agentes do Destino / 2011) e todos os que não o viram estão proibidos de continuar a leitura, pois o final será mencionado. Explicitamente.

 

Há uma tendência humana muito comum – da qual me esforço por libertar e que espero um dia conseguir libertar-me por completo – que é julgar o todo pela parte.  É por isso que não gosto de julgar um filme pelo seu final. Abro apenas uma excepção: quando está presente incoerência. Ou seja, caso o argumento seja enrolado de uma forma cujo desenrolar exija coerência. Nesses casos, é difícil impedir que a parte contamine o todo. Mas há situações onde vejo um filme que me encanta do princípio ao (quase) fim e, quando os créditos começam a escorrer no ecrã negro, penso: “Eu escreveria o final de forma diferente”. Nesses casos não crucifico o filme. Nunca o fiz, nem enquanto crítico ou espectador. Sempre achei que seria um exercício egocêntrico e até pretensioso. Embora a lamente, não condeno a opção. Opto por tentar entender a razão por trás da opção. E é frequente descobrir que certas opções não dependem dos autores, mas dos estúdios, sendo escolhidas por motivos mais estratégicos do que artísticos. E nem todos os autores têm força para pontapear as concessões artísticas pela porta fora. Philip K. Dick pontapeou-as sempre ao longo da sua carreira literária, colhendo daí os diversos frutos consequentes atrás mencionados.

Recentemente, vi “The Adjustment Bureau” pela terceira vez e continuo a gostar muito dele. Para além de me despertar uma espécie de sorriso interior, todos os visionamentos inspiraram conversas. Desta vez, inspirou-me a conversar também com o teclado.

Não sei se é empatia ou simpatia que sinto pela premissa. Talvez ambas. Philip k. Dick idealizou-a no seu conto “The Adjustment Team”, publicado em 1954, onde usa uma metáfora deliciosa para abordar a influência dos sincronismos na vida humana. As danças entre o destino e o livre arbítrio e os pequenos auxílios que eventualmente o ser humano recebe e que apelida, inocentemente, de coincidências, acidentes ou acasos. A adaptação cinematográfica adensou a trama e a metáfora, retratando essa essência sincronística como uma corporação, com hierarquias e agentes vestidos como detectives dos anos 50, que têm como finalidade garantir que todos os “pequenos grandes” acontecimentos e interacções da vida ocorrem de forma propícia a um desfecho que o presente ignora mas que o futuro não só conhece como, tacitamente, anseia. Desde o primeiro visionamento (só posteriormente li o conto) que me senti deliciado com essa metáfora, toda essa representação alegórica dos mistérios da vida e da espiritualidade que, apesar da individualidade das nossas crenças, nos atraem de uma forma ou outra e continuam a semear pontos de interrogação nos nossos âmagos.

Para além de interessante e inteligente, o argumento do filme é engraçado e faz a minha mente sorrir ao longo dos seus 99 minutos. Embora o sorriso esmoreça um bocadinho nos derradeiros. Nota-se que houve uma preocupação deliberada em deixar que um sentimento positivo perdurasse na audiência. Sente-se o intento das pessoas abandonarem a sala satisfeitas, sorridentes, felizes. Uma intenção que, a meu ver, torna o desfecho do filme demasiado apressado e com um sabor um bocado artificial. Não tenho nada contra os “Happy Endings” – embora tenda a concordar com o Stephen King, quando escreveu: “E vou agora dizer que eles viveram felizes para sempre? Não vou porque isso não acontece com ninguém. Mas houve felicidade. E eles viveram” – e até acho que se adequam bem a certos filmes, quando o próprio filme o exige. “The Adjustment Bureau” não o exigia.

Pessoalmente, preferia uma abordagem mais dramática.  A dada altura, é confidenciado a David que se continuar o relacionamento com Elise, o amor não deixará necessariamente de estar presente, mas nenhum deles conseguirá viver de acordo com o seu verdadeiro potencial. Percorrerão juntos uma estrada, ignorando que há dois desvios que, se percorridos individualmente, levariam a um futuro brilhante para ambos. É preciso tomar uma decisão e colher os respectivos frutos.

No desfecho escolhido, ambos decidem sabotar o destino e conseguirem tudo à força. Essa determinação é-lhes reconhecida e valorizada, ficando ambos com o melhor de todas as estradas. E é nessa altura que me surge o tal pensamento: “Eu escreveria isto de forma diferente”. Pela vontade da minha “caneta”, ele – que era o único que tinha conhecimento do rumo de ambas as estradas – opta por se afastar e, após um momento de incerteza, mantém o afastamento quando volta a quase esbarrar com ela. Mais tarde, entra num escritório, tira um álbum da estante e mete-o sobre a secretária, juntamente com um jornal. Recorta do jornal uma notícia sobre um feito tremendo dela na sua área, a dança, onde alcançou um prémio de enorme prestígio, e junta o recorte ao álbum. Derrama uma bebida num copo e fica a sorvê-la enquanto folheia e admira o álbum longamente, sendo perceptível as muitas páginas cheias de recortes de revistas e jornais que o compõem. Sente-se feliz com a escolha e o sacrifício que fez. Com o sucesso que ela alcançou. Não o incomoda que ela nunca saiba de nada disso, que eventualmente o possa considerar frio, insensível ou desonesto pelo seu súbito desaparecimento sem uma única explicação ou palavra de despedida. Lê um recorte com uma citação dela a dizer algo negativo sobre ele, na altura da sua candidatura ao senado e sorri. Compreende, sabe. Sabe os motivos, as intenções e a genuína sensação de felicidade por saber que a sua opção a ajudou a seguir o seu verdadeiro caminho. Isso chega-lhe. Alguém bate à porta e diz: “Está na hora Sr. Presidente”. A câmara permanece sempre focada no livro e acompanha-o, ao fundo, desfocado, a sair da porta.

Esse era o meu final de “The Adjustment Bureau”. Não deixo de gostar muito do filme por ele não ter o desfecho que eu gostava, mas sinto que ele poderia ser ainda mais especial no meu altar cinematográfico, caso o argumentista tivesse optado por percorrer a estrada menos percorrida. Até porque, parece-me, entrava em consonância com a própria história de vida do autor que o inspirou. Acasos, infortúnios, coincidências, afastamentos, aproximações, acidentes, sucessos, fracassos, tudo faz parte da mesma madeira com que se constrói a escada. E é só no final, quando podemos contemplar as coisas do último degrau, que constatamos que chegámos onde chegámos não apesar do que nos aconteceu, mas por causa do que nos aconteceu.

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