Nova-Iorque, 1921. Passaram três anos após o final da I Guerra Mundial. Numa das ruas da metrópole há uma manifestação de enfermeiras. Protestam contra os salários baixos e o elevado número de horas de trabalho. Mary está lá no meio. Reivindicativa, mas de uma forma especial, “doce” dizem as amigas, “profícua” apelida ela. Ouve alguém gritar, à margem da manifestação. São palavras recriminadoras. Dirige-se a ele. Apresenta-se. Fica a saber que ele se chama Paul e é transportador de gás. Ouve-o.

– Eu trabalho com materiais perigosos, transporto dezenas de botijas de gás por dia. Um dia ainda expludo e vão ter de raspar os meus pedaços do asfalto desta rua. Trabalho seis dias por semana. Porque deverão vocês trabalhar apenas cinco?

Mary abriu lentamente os seus grandes olhos castanhos, contemplou-o com doçura e disse:

– E porque vocês não se juntam todos e reivindicam melhores condições para vocês?

Paul continua a reclamar, de forma incessante. Parece nem ter ouvido Mary. Indiferente a isso, ela prossegue.

– Porque criticam quem luta por melhores condições em vez de se inspirarem por essa luta e começarem a exigir o mesmo para vocês?

Paul não responde. Continua a reclamar e nem sequer aborda a sugestão que ela deu. Mary toca-lhe levemente no braço e diz:

– O que vocês ganham em ter outros a trabalhar seis dias como vocês? Não ganhavam mais se lutassem para também terem cinco dias como nós queremos ter?

Paul afasta o braço dela e continua a reclamar. Mary agarra-lhe ambas as mãos, num gesto carinhoso, e diz:

– Não percebes que o argumento divisionista que estás a defender é aquele que é usado por quem detém o poder para nos virar uns contra os outros? E quando o fazes, nivelas-te por baixo? Nivela-te por cima, Paul! Aprende a exigir melhor para ti, em vez de apenas exigires pior para ambos. Isso não é justiça, nem igualdade ou equidade. É nivelarmo-nos por baixo, Paul. É…se me permites, burrice.

Contrariamente ao que seria de esperar, Paul não reagiu negativamente à critica, nem ao insulto que esta vinculava. No entanto, não disse nada. Mary aproveitou o silêncio para continuar:

– Acredito que daqui a uns 100 anos as coisas vão ser diferentes. As pessoas do futuro vão estudar estas atitudes da nossa sociedade e vão rir-se de nós. Vão questionar:  Como é que as classes profissionais naquela altura não percebiam que ao lutarem umas contra as outras por estas migalhas de direitos, apenas estão a manter-se cada vez mais longe da fatia inteira que podiam obter, caso se inspirassem pela luta dos outros para também lutarem por si? Mas, em vez disso, em vez de coesão, gladiavam-se na praça pública por migalhas. Aquela hora a mais, aquele Dólar a menos… Por agora, é isto que temos Paul. Ajuda-me a mudar as coisas.

– Apenas queremos igualdade – afirma Paul, convicto.

– Paul, o que devia ser equitativo era a luta conjunta. A reivindicação. Se eles conseguem uma hora a menos e um Dólar a mais, eu também vou lutar por isso, de forma a ter o mesmo. Mas o que acontece é o contrário. O pensamento vigente é: Se eu não tenho quem são eles para exigir ter? Vou criticá-los pela audácia e usar o meu exemplo para os pôr no seu lugar. Ora, porque não nos unimos e passamos ambos a estar num lugar melhor? Estás a perceber, Paul?

– Acho que sim – afirma Paul, embora algo hesitante – Não sei se os meus colegas vão nisso. Se calhar daqui a 100 anos as mentalidades vão ser diferentes, como dizes…

– Estou certa que sim. Sabes, por vezes dou por mim a sonhar, a imaginar poder navegar no tempo e ter apenas um vislumbre dessa sociedade evoluída, sensata e inteligente do futuro. Quem me dera…

Mary soltou um breve suspiro no fim da frase. Depois beijou a face de Paul e voltou para a sua manifestação.

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