O ruído do estalar de um ramo desperta-me. Alumio o relógio com a lanterna, passam poucos minutos das quatro da manhã.  Durante alguns instantes, fico sem saber o que fazer. “Deixo-me estar aqui quietinho ou vou lá fora?”. Resolvo tentar uma solução intermédia. Desço devagarinho o fecho da tenda, só o suficiente para conseguir pôr metade da cabeça lá fora e espreitar. É em vão, está escuro, não se vê absolutamente nada. Mas tudo parece tranquilo e quase silencioso, não fosse o som incessante da água do riacho, cinco ou seis metros abaixo do sítio onde decidi montar acampamento, por saber que os ursos ali se costumam alimentar ao amanhecer.

Durante anos desarmei os receios que alguns amigos têm de acampar na natureza com um único argumento: Em Portugal não há espécies predadoras letais para o homem. Só há duas espécies de víboras venenosas (Cornuda e Seoane) e nenhuma delas é letal para um adulto saudável. As picadas da viúva negra europeia ou do lacrau, embora dolorosas, são tratáveis. E os “famigerados” lobos evitam-nos mais do que nós os evitamos a eles. “Imaginem como fazem as pessoas na Austrália, que está recheada de espécies assassinas? Ou em tantas montanhas e florestas dos Estados Unidos, onde a qualquer momento pode surgir um urso?”.

O argumento geralmente funciona. Tal como as pessoas nesses países se habituaram a conviver com essa possibilidade mais ou menos omnipresente de risco, nós habituámo-nos a conviver com a nossa, bem mais escassa. E por isso, já mais do que uma vez, levei comigo alguns desses amigos(as) a acampar nas montanhas. À noite, em redor da fogueira (responsavelmente acesa), gosto de lhes contar histórias sobre mitos e lendas da região ou até de animais improváveis que já por ali andaram, no passado. Como os ursos. Muita gente não sabe que os ursos já foram um animal habitual em certas regiões do nosso território. Pensa-se que o último terá sido morto no Gerês, em 1843. E menos pessoas ainda sabem que há ursos selvagens muito perto de nós, no Norte de Espanha ao longo da cordilheira Cantábrica e, em especial, nas montanhas e florestas das Astúrias.

Em 2009, decidi ir lá. Planeei uma pequena uma expedição ao longo da cordilheira cantábrica. Tinha vários planos em mente para esses 10 dias. Queria fazer montanhismo nas Astúrias, queria fazer a Ruta del Cares. Queria visitar os lagos de Covadonga. E queria tentar fotografar, no seu habitat natural, os únicos ursos pardos que vivem na Península Ibérica.

Na véspera, pernoitei em Chaves. No dia seguinte, começou a aventura. Entrei em Espanha e percorri cerca de 350 quilómetros até Posada de Valdeon, uma pequena povoação da Província de Leon, já nos Picos da Europa, onde deixei o carro e segui de mochila às costas.

A cordilheira cantábrica estende-se no Norte de Espanha durante 480 quilómetros, paralela ao mar que tem o mesmo nome. Na região, há duas subpopulações de ursos localizadas e identificadas, a ocidental, onde se estimam 280 exemplares, e a oriental, com cinquenta. Eu estou mais ou menos no meio. E estou a planear seguir para Norte, a acompanhar um pequeno desfiladeiro onde segue um riacho. Esse curso de água é o Rio Cares, que atravessa os Picos Europa de cima a baixo, até desaguar no mar cantábrico.

Está um dia nublado, mas não chove. É Abril e após um Inverno de hibernação, os ursos estão de volta às florestas em busca de alimento. Na fase de preparação, já tinha recolhido alguns registos de presença deles nesta zona. Embora se alimentem maioritariamente de frutos silvestres, mel, borboletas e pequenos roedores, também apanham peixes nos cursos baixos de água. É esta última possibilidade que tenho em mente.

O trilho serpenteia entre montanhas escarpadas com cumes cobertos por neblina. Juntamente com o som suave do vento, o cenário é quase místico.  Os antigos celtas chamavam a este sítio ‘cantabr’. ‘Cant’, significa pedra e ‘Abr’, povo. “O povo que vive nas montanhas”.

A determinada altura, o desnível torna-se mais suave. Vou atravessando pequenos planaltos cheios de verde, ladeados por muros de granito e rochas agasalhadas com musgo. De vez em quando há umas casas, pequenas e rústicas, que deduzo serem abrigos de apoio agrícola. Começo a descer, rumo ao desfiladeiro. Noto que a neblina está a escorrer dos topos das montanhas e a abater-se sobre o vale. Está na hora de montar acampamento.

Encontro o local ideal perto de um desses abrigos. Um terreno mesmo acima do riacho, coberto por uma densa e confortável manta verde. De manhã vou ter um ponto elevado privilegiado para fotografar o riacho. E com um pequeno muro de granito em frente, a ocultar-me. “É aqui mesmo”. Monto a tenda e preparo o jantar. Uma sopa de peixe instantânea, fervida no campingaz. Por volta das 22 horas, recolho à tenda. Amanhã, o despertar é antes do amanhecer.

Há um outro ruído similar no bosque, embora mais distante. Resolvo sair cá fora e tentar averiguar. Não quero acender a lanterna para não atrair atenções sobre mim. Vou apenas tentar descortinar algum vulto em movimento no meio desta escuridão cerrada. Pensei que ia ser uma noite de nevoeiro, mas a neblina parece ter-se dissipado por completo antes de chegar cá. “Ainda bem”, penso. Os meus sentidos iam estar ainda mais limitados se assim fosse. “E talvez um pouco mais arrepiados”.
Fiquei sentado uns bons trinta minutos do lado de fora da tenda. “Acho que a costa está livre”.
Embora algo reticente, volto para dentro. Tento adormecer. O sono parece ter ido fazer companhia ao que quer que tenha sido que fez aquele barulho.

Acordo com o teto da tenda inundado de claridade. “Damn!”. Tinha diminuído o som do despertador do telemóvel, para não arriscar afugentar eventuais presenças animais lá fora. Devo ter diminuído demais, pois não me acordou. Ainda por cima já devo ter adormecido tarde, o que também não ajudou.
Saio da tenda, faço o pequeno-almoço e fico o resto da manhã a deambular por ali.  Nada de ursos, nem vestígios de ursos. Procuro pegadas ou outras marcas, nada.  Resolvo levantar o acampamento e seguir caminho.

 

 

Durante a noite, cheguei a sentir-me arrependido de não ter comprado, preventivamente, uma espécie de spray que repele os ursos, caso eles se aproximem. É aconselhado a quem se aventura a pé nestas zonas, mas na altura achei-o caro e resolvi abdicar dele. Pesou na minha decisão o que tinha lido no website da Fundação do Urso Pardo, antes de fazer a viagem. Estes ursos não são agressivos como os grizzlies americanos.  Tentam evitar ao máximo os humanos e um eventual confronto costuma ser uma “carga dissuasora”, após a qual – ao constatarem que não correm perigo – fogem. Nos últimos 25 anos houve sete incidentes entre ursos e humanos nesta região. Nenhum fatal. Não ia acontecer logo ao português…

Sigo o desfiladeiro em direção a Norte. Encontro uma zona densamente arborizada com uma placa: Chorco de los Lobos. É uma armadilha antiga para caçar lobos. Era feita uma batida na encosta de uma montanha para afugentar os animais na direção ao sopé. Lá em baixo, um conjunto de estacas dissimuladas com as árvores, afunilavam o caminho. Se eles tivessem o azar de entrar lá, esperava-os os “choceros”, caçadores escondidos num pequeno esconderijo de madeira e armados com uma longa lança, para impelir os animais à queda num poço de granito no vértice da armadilha. Eram então mortos de uma forma cruel que me recuso a descrever aqui. Era usada desde o século XVII e a última batida ocorreu nos anos 50.

O riacho transforma-se cada vez mais em rio. Paro junto a uma margem para fazer umas sandes e almoçar. Consulto o mapa, estou a cerca de cinco quilómetros da aldeia de Caín, o meu ponto de partida para fazer a mítica Ruta del Cares (essa merece um texto próprio). Sinto-me algo desanimado por não ter conseguido fotografar nenhum urso em toda esta jornada. Um sentimento que rapidamente sacudo, com a recordação de uma reportagem que escrevi há um par de anos, após passar quatro dias numa canoa a descer o Douro Internacional. Na altura vi grifos, abutres do Egipto, entre muitas outras aves raras, exceto uma: a águia mais rara e mais difícil de avistar em Portugal: a águia-real. Lembro-me de como terminei o texto: “Não a cheguei a ver, mas é fantástico saber que ela está lá”. É igual com os ursos nestas montanhas espanholas.

 

Epílogo

Dez anos após os acontecimentos relatados neste texto – e por coincidência também no mês de Abril – fui passar alguns dias no Parque Natural de Montesinho, no nordeste de Portugal. Aluguei uma casa na aldeia de Vilarinho, que fica no coração do parque. O sítio perfeito para fazer trilhos e explorar a região. Um deles arranca, precisamente, da aldeia e penetra profundamente nas florestas destas montanhas. São oito quilómetros repletos de verde, de silêncio, de inspiração. Tem algumas surpresas, que não vou desvendar. Quer dizer, vou dar uma dica em relação a uma: Preparem-se para descalçar as botas e arregaçar as calças.

 

Já na ponta final do trajeto, passei por um percalço engraçado; bem, na altura não teve piada nenhuma. Há um estranho minério esverdeado que é extraído destas montanhas. Ainda não consegui descobrir o nome, mas tem um aspeto invulgar. Numa subida, já no derradeiro quilómetro, encontrei um enorme veio junto ao trilho. Resolvi escolher uma dessas pedras para enfeitar o meu escritório – qualquer dia parece um gabinete de um geólogo – por isso disse à namorada para ir avançado que depois eu acelerava o passo e apanhava-a. Após alguns minutos a remexer nos calhaus, lá encontrei o espécimen perfeito. Voltei ao caminho. No topo da subida, avistava-se a aldeia. Segui em frente, entrei na povoação, abri o portão da casa, subi as escadas, abri a porta e, contrariamente ao que eu tinha suposto, ela não tinha chegado a casa. “What the hell?!”. Voltei para trás, em passo de corrida, já sem o peso da mochila, da máquina e das objetivas. Voltei ao veio do minério misterioso. Nada! Voltei a correr até à casa. Nada. Andei pela povoação. Nada. Voltei atrás mais uma vez. Notei que num prado a uns 20 ou 30 metros do trilho haviam várias colmeias e estavam dois apicultores a trabalhar. “Terá parado para ver a atividade?”. Não estava lá.

Não havia rede de telemóvel nesta zona. Como não levei rádio transmissores (é a última vez que não os levo seja para que trilho for), recorri à velha estratégia de gritar feito maluco. A resposta fez-se sentir, de uma zona que me pareceu um pouco afastada da povoação. Afinal o trilho contornava primeiro os arredores da aldeia. Ela é que tinha seguido o trilho corretamente e se deixou ficar lá à espera, sentada à sombra de uma árvore. Eu, o gajo que anda sempre a dar dicas de pedestrianismo, é que me tinha enganado, ao seguir convicto em frente quando vi a aldeia e sem reparar nas marcas. Elas têm sempre razão.

Ao entardecer, enquanto relaxava no alpendre da casa com vista para as montanhas, estive a conversar com o anfitrião, Luís Correia. Descobri que ele é apicultor, proprietário da Apimonte e que as colmeias que eu tinha visto eram dele. Nunca fui grande apreciador de mel, mas depois de ouvir uma cativante explicação dele sobre o tema e sobre o seu genuíno processo artesanal, coloquei a hipótese de nunca ter provado verdadeiro mel até hoje. Comprei vários fracos, para mim e para oferecer a familiares.

Duas semanas depois, o país despertou com a notícia que tinha sido avistado um urso pardo em terras portuguesas pela primeira vez em 176 anos. Mais propriamente, em Montesinho.
Quarenta e oito horas depois, surge a notícia que o urso se tinha alimentado de 50 quilos de mel. Adivinhem que colmeias é que ele atacou?

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