O tilintar das correntes na madeira do portão anuncia mais uma noite de descanso na senzala. Dois escravos não têm sono.

– Jim, já pensaste que a nossa vida podia ser diferente? –  pergunta Petru.

– Diferente como?

– Sei lá, termos vida normal.

– Tu tens vida normal, Petru.
Jim direcciona o olhar para cinco escravos que dormem tranquilamente, aninhados no chão de terra.  – Esta é a nossa normalidade.

– Mas será que tem de ser?

– Mas é. Por isso do que vale dizeres essas coisas?

– Estava só pensando. Somos homens, humanos. Será assim tão estranho imaginar uma vida onde pudéssemos ser livres como eles, ir à escola quando somos pequeninos, ter um trabalho e uma casa quando somos grandes.

– Tu não és como eles, Petru. Aceita quem és. Mas também trabalhas. E também tens esta casa, não dormes na rua.

– Mas porquê a diferença? Porque não podemos ter uma vida como eles?

– Já te disse para aceitares quem és. Olha para a cor da tua pele. És escravo. Somos todos. Aceita isso.

– É assim tão difícil imaginares que um dia poderíamos ter uma vida diferente, Jim?

– É difícil sim. Porque isso não é real e nunca vai ser. Não percebo porque perdes tempo a pensar em coisas que nunca vão existir.

– Olha, não te sei dizer porquê, mas para mim não é difícil, Jim. Antes de dormir, quando tudo está escuro e sem barulho, consigo olhar e ver outro mundo. Um em que podia ter um filho e uma mulher e uma casa. E que ele tem uma cama só dele. Não usa correntes nos pés. É educado por um senhor professor, não por um chicote. Nós podemos ir conhecer sítios. A vila, o mato, o que quisermos. De noite, em vez de estar trancados, podemos ir andar.

– De noite? Andar onde de noite, homem?

– Ir. Não sei onde, mas ir. Ouvir os mochos a cantar no bosque, ver as estrelas que brilham lá em cima. Falo de um mundo onde podemos escolher fazer coisas simples como essas. É isso que quero dizer. Imagino um mundo onde podemos ser livres para escolher como viver a vida.

Há um momento de pausa. Petru sente a expectativa. Por breves instantes os olhos de Jim perdem-se na distância. “Estará a imaginar?”, questiona-se Petru. Sente-se confortado por essa possibilidade. Como se a partilha de um sonho louco possa contribuir para dissolver a loucura do sonho. Os olhos regressam, fixam-se em Petru por uma fração de segundo, antes de Jim virar a cara. Olha agora em frente, com metade do seu rosto iluminado pelo luar que trespassa uma fresta nas tábuas do telhado.

– Essa tua imaginação não te ajuda em nada, Petru. O mundo sempre foi assim. E sempre será. É coisa de cachopo não aceitares a realidade como ela é.

 

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