A sua grande paixão era a escrita, mas quis a História que ele ficasse conhecido como realizador de cinema. “Nunca me sinto mais próximo de mim do que quando escrevo. E nunca aprecio um dia, qualquer dia, mais do que um bom dia de escrita”, confessou, no mesmo fatídico mês em que morreria, nove anos depois. Mas esse não foi o único capricho de destino a calafriar a nuca de Anthony Minghella, nos seus 54 anos de vida. O seu primeiro filme, «Truly Madly Deeply”, está, em vários níveis, intimamente ligado à sua morte precoce. A sua primeira aventura na Sétima Arte e a sua derradeira viagem rumo ao último dos mistérios, entrelaçados na linha da sina. E mais uma vez Oscar Wilde sorri, do fundo da sua tumba no Père Lachaise, ao ver a sua sentença, um dos mais gastos e citados aforismos do mundo, voltar a aplicar-se. A vida voltou a imitar a arte.

Anthony Minghella disse que nunca mais viu o filme, desde que o escreveu e realizou em 1990. Harvey Weinstein, seu produtor e amigo, duvida que tenha coragem de o voltar a ver. Eu vi-o na mesma noite em que escrevo estas linhas, 18 de Março, aniversário da morte do cineasta Inglês. E confesso-me atordoado. Talvez seja o horrível Chianti que sorvo, em honra das terras italianas onde Minghella “se sentia mais feliz”; talvez seja da Suite Nº 3 de Bach, “a bússola pessoal” do realizador, que já soou tantas vezes esta noite nesta sala vazia que desconfio que para sempre ecoará nas suas paredes. Talvez seja do tropeção no saliente e arrepiante paralelismo entre criador e criação que “Truly Madly Deeply” encobre.

 

O despontar da arte

A paixão para o cinema despertou ao melhor estilo cinéfilo: À la Cinema Paradiso. Tudo aconteceu numa pequena ilha na costa Sul de Inglaterra, chamada Isle of Wight, onde Minghella nasceu em 1954. Os pais do cineasta, imigrantes italianos, possuíam um café humilde e pitoresco, onde o pai vendia gelados de fabrico caseiro.

Do outro lado da parede estava o cinema local. O projeccionista alugava dois quartos nas traseiras do edifício da família Minghella. E desenvolveu-se uma cumplicidade que levaria o pequeno Anthony à cabine de projecção, todas as matinés de Sábado. Era o amanhecer de uma arte nos horizontes de um menino gordinho e traquina, que encontrava a paz na luz que atravessava a escuridão e se fundia numa tela, que retribuía oferecendo mundos e universos.

Mais tarde, nos anos de adolescente e de descoberta das meninas, o destino passou a ser a última fila do cinema. “Tentava, desalentadamente, inutilmente, explorar dois desejos em simultâneo”, confessou Anthony Minghella.

E assim foi. Anos, décadas antes da obra-prima de Tornatore enternecer audiências mundo fora, num pedacinho de terra perdido no Atlântico Norte, Minghella apaixonou-se pela Sétima Arte. Mas o seu coração era artisticamente polígamo. Outras paixões, até maiores, se seguiriam.

 

Exorcizar demónios com água artística 

“Fui um adolescente infeliz, zangado, rebelde”. Ao olhar para trás, Minghella recordava os atritos que o consumiam. E os bálsamos que o acalmavam. A maior parte dos seus amigos tinha um diário no quarto. Ele tinha um piano. “Era só aquele piano que exorcizava os meus demónios”. Começou a escrever e compor música aos 15 anos. A criação tornou-se o seu escape. “Através da criação eu podia celebrar o que era diferente em mim, em vez de pedir desculpa”.

A música passou a vício. Alastrou-se pelas suas veias, tornou-se parte do seu ser, acompanhou o bombear do seu sangue, o temperamento do seu espírito. Mas rápido a passividade passa a actividade. Os verbos acompanhar e guiar fundem-se, confundem-se, misturam-se. E o consumo, esse aumenta. “Vai-me ser impedido o acesso ao Céu por causa dos CDs que possuo e da gula que tenho por todos os tipos e cores de música”, penitenciou-se Minghella.

Questionado sobre a sua maior fonte de inspiração musical, o realizador inglês nunca hesitava: “Bach! É a minha bússola”. Mas era intenso o seu ecletismo, impelindo a sua audição à tentação das mais variadas orgias genéricas. “Tão depressa estou apaixonado por John Coltrane como por Mozart”.

Imerso nessa paixão híbrida, criou um harém para acolher escrita e música. Ouvia música húngara, árabe e Italiana pós-guerra, enquanto escrevia “The English Patient”. Opera e Jazz durante “The Talented Mr. Ripley”. “É uma viagem incrível, seleccionar a música certa para a escrita”.

E é a escrita a sua maior perdição. É ela a odalisca que lhe dá mais prazer, o toque que melhor lhe acaricia os sentidos, o amor assumido entre todas as outras paixões. “I write because I am”, afirmou, estóico e resoluto.

Começou por escrever músicas e peças de teatro. Com o tempo, a frustração começou a interiorizar-se. O seu íntimo nutria um sentimento de perda por entregar o fruto da sua criação a outras mãos, como um pai que entrega um filho para adopção, sentindo que não fez tudo o que poderia fazer pela sua educação, pelo seu amadurecimento, pela sua consolidação enquanto homem, enquanto obra. E assim, Minghella decide assumir também as rédeas da realização. E nascia “Truly Madly Deeply”. Mais do que uma estreia, uma epifania: “foi um desafio de vida para mim, pois percebi que isso [escrever e realizar] era o que eu devia ter feito desde sempre”.

Filmado em 28 dias – o mesmo tempo que Minghella levou a efectuar a pesquisa dos locais de filmagem de “Talented Mr. Ripley” – e com um orçamento de 600 mil dólares, o filme ganhou notoriedade. Uma assistente da produtora Miramax entregou uma cópia a Harvey Weinstein, instruindo o produtor a ver o filme o mais rápido possível. Weinstein acedeu à sugestão. Viu, riu, chorou. No dia seguinte, telefonou a Minghella:

– “I must have your movie.”

– “You’re too late”, replicou o realizador.

– “I’ll never be late for you again”.

Harvey Weinstein cumpriu a promessa. Desde então, produziria os restantes filmes de Anthony Minghella (à excepção de “Talented Mr. Ripley”). E o instinto e faro predador de produtor não se enganaram. Seis anos depois daquela conversa, ambos levariam um Oscar para casa.

«Truly Madly Deeply” venceu 15 prémios internacionais, incluindo um BAFTA para melhor argumento e inúmeros galardões para o trabalho magistral da actriz Julie Stevenson – amiga íntima de Minghella para quem o filme foi intencionalmente moldado e escrito – entre os quais um atribuído na edição de 1992 do Fantasporto.

O filme ganhou estatuto de culto, um pouco por todo o mundo. Para onde quer que Minghella viajasse, encontrava fãs que lhe citavam linhas inteiras de diálogo do filme. “Comecei a sentir-me assombrado por ele”, disse o realizador, num momento de descontracção. “É um filme muito privado e íntimo, nas mais variadas formas. Sinto uma grande nostalgia por ele e pela sua simplicidade”, afirmou, 10 anos depois da sua criação e oito antes da sua própria extinção.

 

Com o ouro vem a consagração

“Mr. Wonderfull” foi o seu próximo projecto, o único que Minghella realizaria sem ter estado por trás do argumento.
Em 1996 surge a oportunidade de adaptar “The English Patient”, romance de Michael Ondaatje, escritor natural do Sri Lanka.
Minghella tropeçou no livro e ficou fascinado com o seu potencial cinematográfico: “Imagens brilhantes estão espalhadas pelas páginas, num mosaico de narrativas fragmentadas. Numa única página o leitor é confrontado com eventos no Cairo, na Toscânia ou em Inglaterra, durante diferentes períodos históricos, com diferentes narradores”.

O bichinho dentro do realizador e argumentista começou a ficar excitado, hiperactivo. Minghella telefonou a Saul Zaentz – “o único produtor que eu conhecia que era louco o suficiente para contemplar semelhante projecto” – e lançou o desafio. Uma semana depois, Zaentz comunica que adorou o livro e que, curiosamente, o escritor ia estar presente numa sessão de autógrafos a poucos metros da sua casa, em Berkeley. “Encorajei-o a encarar isso como um presságio”, referiu Minghella.
Pouco tempo depois, a luz verde é dada, já com Weinstein na equipa de produtores.

Quando Minghella se sentou em frente do seu Apple Mac Powerbook, a palidez do ecrã reflectiu-se na sua consciência. Verificou que ignorava tudo sobre o Egipto, que nunca tinha estado no deserto, que não sabia usar uma bússola ou ler um mapa, que não se lembrava de quase nada das lições de História sobre a II Guerra Mundial e que, “embaraçosamente”, desconhecia imenso sobre a Itália; “a terra dos meus pais”.

“Pedi emprestada uma cabana em Durweston, em Dorset, e enchi o meu carro com livros”. Essa pequena vila rural no sudoeste britânico, repleta de planícies verdes, riachos e moinhos de água, foi o refúgio onde Minghella passou um ano e meio, em extenso processo criativo.
A escrita do argumento de “The English Patient” demorou 18 meses, o dobro da gestação do ser humano. Mas até o mais atrasado dos partos pode revelar um nascimento feliz. Já atrás das lentes, da infância à idade adulta, foi um ápice. “Ver o Anthony a dirigir a Juliette Binoche foi como ver um maestro a conduzir a sua orquestra. No deserto, na Toscânia, ele compôs a sua poesia”, recorda Weinstein.

Mais tarde, ambos viram o filme com Barbara Streisand que, sem papas na língua, o considerou sobrevalorizado e demasiado longo. Acabaria nomeado para 12 Oscares da Academia. Na cerimónia, Barbara sentou-se atrás de ambos. “Isto é um bom sinal ou um mau presságio?”, sussurrou Minghella a Weinstein. A noite desenrolou-se. “The English Patient” levaria nove estatuetas douradas para casa, incluindo uma para cada um deles (melhor realizador e melhor filme). “Durante toda a cerimónia, a Barbara batia entusiástica nas nossas costas e ria-se com a ironia”, relembra Weinstein. “Acabou por ser o nosso amuleto da sorte, como na altura disse o Anthony”.

 

O mergulho na complexidade

1999. Sydney Pollack adquire os direitos do livro “The Talented Mr. Ripley” e envia-o a Minghella, para escrever o argumento. “Bastou trabalhar três dias no guião para decidir que não lhes queria devolver o filme”, afirmou o realizador.

A complexidade do livro cativou-o. Aliás, sempre foi essa a sua estrela polar, que tantas vezes o orientou na escolha dos livros a adaptar ao cinema. “Quanto mais complexo o livro, mais original pode ser o argumento, maior a sustentabilidade criativa para o realizador”. E “The Talented Mr. Riley” estava recheado. Uma personagem perpetuamente encarcerada na sua própria mente, a mais cruel das sentenças. “A ideia de ser um falso alguém em vez de um verdadeiro ninguém é uma das maiores tentações da vida. O medo que todos temos do que as pessoas pensariam de nós se soubessem quem somos na realidade”, exemplificou Minghella, complementando: “Esse conceito de uma cave, onde todos escondemos os nossos demónios, é a parte mais interessante de cada pessoa”.

E, para além do suculento argumento, as filmagens na Costa Amalfi, idílica vila costeira na província de Salerno, no Sudeste Italiano. “A costa Amalfi. Pasta. Jude. Gwyneth. A Itália reavivava-o. Refrescava-o. Ele era inglês em cidadania, mas italiano na alma”, evoca Harvey Weinstein. Não é por acaso que Minghella afirmou que, por ele, trabalharia todo o resto da sua vida nesse filme. “The Talented Mr. Ripley” foi uma das suas criações predilectas. Ainda hoje recordo o impacto dos murros no estômago que senti aquando do seu primeiro visionamento. E ainda hoje, mesmo com o carinho especial que passei a nutrir pelo seu primeiro projecto, continuo a metê-lo no pedestal da sua filmografia.

 

Folheando imagens e páginas

Seguia-se “Cold Mountain”. O filme, embora retrate a Guerra Civil Americana, foi rodado na Roménia, devido a limitações de orçamento. Uma estância de esqui em off-season, a poucas horas de Bucareste, foi o refúgio que albergou a equipa de produção. Num dos dias, acabou a comida. Os sorrisos substituíram o pânico. Renée Zellweger fez uma longa caminhada até à povoação mais próxima para comprar mantimentos. A Nicole Kidman cozinhou, com a ajuda de um sempre sorridente Anthony Minghella. “Ele fez da equipa de produção uma família”, disse Weinstein, sublinhando o espírito de camaradagem que o realizador britânico conseguia incutir na massa humana das suas construções. “Cold Mountain”, inspirado na obra de Charles Frazier, seria a sua última adaptação literária. Frazer adorou o filme e isso, como sempre, marcava o zénite de Minghella. Agradar ao autor do livro era mais importante para ele do que qualquer crítica ou prémio. “Como dramaturgo e poeta, ele conhecia bem a solidão e a perseverança do escritor”, relembra Weinstein.

Fascinava-o sentir, tocar o meridiano que separava filme e livro. Minghella expressa-o melhor do que ninguém: “Uma adaptação cinematográfica deve ser como ouvir um amigo expressar a excitação do novo livro que leu. O mensageiro entusiasta que traz novidades de algures, recordando as melhores partes, exagerando a beleza, temperando o mistério, sondando o imperativo moral do que leu… orquestrando tudo isso de forma a incentivar a audiência a peregrinar à fonte, enquanto assevera o valor intrínseco do filme”.

 

Twists of fate

“Breaking and Entering”, em 2006, marcaria o regresso ao argumento original. Anthony Minghella acabou como começou, com um filme inteiramente escrito pelo seu punho.
Dois anos depois, o mundo do cinema acordava sobressaltado com a inesperada notícia da sua morte, com uma hemorragia cerebral fatal, desencadeada por uma operação a um cancro.

Perecia o cineasta influenciado por David Lean, Hitchcock e Fellini; que escrevia notas manuscritas ilegíveis, que nem ele próprio conseguia decifrar; que lia poemas de Raymond Carver, C.K. Williams ou Ann Carson como antídoto para os bloqueios de escrita; que aos 18 anos sonhava fugir da pequena ilha onde vivia rumo às metrópoles do mundo, e para onde, nos últimos anos de vida, sonhava um dia regressar.

Que um dia resolveu escrever e realizar um filme que, verdadeiramente, loucamente e profundamente deixou marcas indissipáveis em quem teve a sorte de lhe debruçar um olhar. As manchetes falam por si: “Truly Madly Deeply Missed” (CNN),  “We will miss Minghella Truly Madly Deeply” (New York Daily News), “Minghella’s loss cut’s truly madly deeply” (LA Times), “Truly Madly Talented” (EFilmCritic).

A criação primordial de Anthony Minghella é como uma Caixa de Pandora. Nela está contido algo de belo, de profético, de insólito, de sombrio. Mas a sua abertura, contrariando todos os mitos, apenas traz conforto e harmonia.

Sim, é verdade que uma das personagens principais do filme é um artista que morre prematuramente, com uma complicação despoletada por uma inflamação na garganta. E não é menos verdade que Anthony Minghella é um artista que morre prematuramente, com uma complicação despoletada por uma operação a um cancro na garganta.

Mas nada disso interessa quando assistimos a “Truly Madly Deeply”, quando somos dominados pela precisão cirúrgica com que uma indução nos faz sorrir ao minuto 01:30:07 e uma confirmação nos faz soltar uma lágrima ao 1:39:40. Quando tomamos consciência que o próprio Minghella, com o mais belo e puro dos seus filmes, ofereceu à sua família, amigos e espectadores o melhor conselho para ultrapassar o seu luto.

Texto originalmente publicado na E-zine C7nema, em Março de 2009, no aniversário da morte de Anthony Minghella

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