O médico olha para o rosto inconsciente do jovem paciente, deitado na cama do hospital e infetado com coronavírus covid-19. Conhece-o, é amigo da filha. Na semana passada, ele ligou-lhe insistentemente. “É só um copo; duas horitas no máximo; vai toda a gente; bora lá, estás a ser paranóica; és uma cortes”, entre outras investidas que a filha, estoicamente, recusou. E essa recusa não foi o que o orgulhou mais. O que o fez transbordar de orgulho foi a repugnância – natural, instintiva, etérea – que ela sentiu quando ouviu a frase: “Isto só ataca velhos”. Foi essa frase que a fez desabafar com o pai. É por causa dessa frase que ele sabe, provavelmente, a razão do jovem estar aqui hoje.

Dentro de cinco minutos vai dar início ao procedimento. Enquanto a sua equipa prepara os materiais e equipamentos, o médico debruça-se sobre ele. Apetece-lhe dizer-lhe algumas coisas. O tom de voz é tranquilo, praticamente sussurrante.

– Se eu pudesse, meu caro jovem, levava-te ao quarto do lado e apresentava-te a senhora Vera. Tem 70 anos, acabou de chegar. Está animada e positiva, apesar da situação. Se a infeção dela evoluir, provavelmente não vai ter direito ao ventilador que necessita para sobreviver. Há poucos e o protocolo é dar prioridade aos mais jovens, com mais esperança de vida.

Se eu pudesse, antes de ligar o teu ventilador, que te vai permitir respirar com a tua pneumonia bilateral, obrigava-te a olhá-la nos olhos e pedir-lhe desculpa. “Desculpe, senhora Vera, pela minha irresponsabilidade contribuir para a senhora nunca mais voltar a ver o seu marido, que está neste momento em casa a suplicar pela sua recuperação”. Sabes, ela disse-me que eles não tiveram filhos, só se têm um ou outro. São o mundo um do outro. Ela não faz ideia como apanhou o vírus, só saiu de casa para ir comprar os medicamentos dele. Mas este cabrão está tão alastrado que lá se cruzou com ela, num desses dias. E tu, meu caro jovem, vais ocupar o instrumento que lhe poderia salvar a vida. Deves-lhe uma desculpa por isso.

Eu sei o que tu me dirias. “Acha que eu quis apanhar o vírus, acha que eu estou contente por estar aqui? Foi um acidente”. Não, meu caro jovem. Há muitas pessoas contaminadas por acidente. E há pessoas, como tu, contaminadas por negligência. Por inconsciência. Por não seguirem, deliberadamente, os protocolos de segurança. Por estarem dopadas com o pensamento mais ilusório que existe no mundo: “Só acontece aos outros”.

A senhora Vera, essa é uma vítima colateral desse teu vício descontrolado, dessa tua tendência tão pueril de te injectares com essa frase em todas as atitudes que tens na vida. Mas não é a única. Há vítimas diretas também, cuja responsabilidade decai diretamente sobre ti. A tua mãe, o teu pai e os teus avós, todos podem estar contaminados. Aliás, podem estar, neste preciso momento, num outro hospital, prestes a necessitarem de um ventilador que também estará ocupado por outro jovem. Outro jovem anestesiado pelo mesmo pensamento.

– Doutor, está tudo pronto para iniciarmos os procedimentos – diz a enfermeira.

O médico acena-lhe com a cabeça. Inicia a intubação endotraqueal, enquanto dirige ao jovem mais algumas palavras, agora em pensamento.

– Tu vais viver, meu caro jovem. O nosso trabalho é esse. Garantir que tu vivas. É quase um paradoxo, mas é a realidade que escolhemos. Arriscamos a nossa própria vida para garantir que tu vivas. Fazemo-lo hoje, fazemo-lo todos os dias, sem nunca pedir nada em troca. Mas hoje apetece-me pedir. Espero que esta experiência te consciencialize. Que te faça crescer. E que um dia consigas alcançar a admirável maturidade que a minha filha já tem com a tua idade. Ter a noção que o nosso papel neste mundo vai muito além do espectro da nossa própria existência.

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