Numa noite fria do derradeiro mês de 1991, falava-se de guerra numa mesa de café, perdida algures no centro de Zagrebe. O tema estendia-se a toda a recém-criada Croácia e não era excepção entre o grupo de jornalistas sentados no canto do bar.
Eram profissionais de áreas diferentes – imprensa, televisão, rádio – mas, por entre canecas de café quente e copos de cerveja, partilhavam uma única inquietação: “Como é possível que estejam a ser cometidos crimes de guerra neste preciso momento, a menos de 100 quilómetros desta mesa, que todo um país fale sobre a dimensão da tragédia, sobre a quantidade de pessoas que está a morrer e não haja uma única imagem, uma prova visual e documental do que está a acontecer?”.

Passavam três semanas desde o massacre de Vukovar, onde centenas de croatas foram executados por milícias sérvias. O grupo estava irrequieto, exasperado até, com a asfixia mediática. Os locais onde a tragédia se desenrolava estavam localizados em território ocupado pelo inimigo. Não havia acesso possível.
Até que um dos jornalistas, calmamente, sorveu um último gole de café e disse: “Amanhã vou arranjar as fotografias!” Todo o grupo se riu. Mas Zoran Filipovic não estava a brincar.

Nessa mesma madrugada, o fotojornalista croata arrancou. “Sentei-me no carro e conduzi noite fora até essa fronteira de sangue”. Rodou quase uma centena de quilómetros até Petrinja, na Croácia central. Escondeu a câmara nas calças e as objectivas nos bolsos. “Pretendia passar por um lunático perdido que, sem o saber, atravessa uma zona de guerra”.
A povoação estava toda queimada e destruída. Paredes destroçadas, cadáveres às portas das casas, na relva, na estrada. E Zoran Filipovic, aos 32 anos de idade, jornalista de uma revista local de Zagrebe, caminhava solitário pelo meio da devastação. “Apenas caminhei, como se fosse uma caminhada de lazer. Foi assim que entrei no inferno”.

De tempo a tempo, assombrava-o a sensação de estar a ser observado. Por momentos pensou que ia ser baleado por um sniper. Mas nada aconteceu. “Continuei a palmilhar cada centímetro daquele cenário de devastação, devagarinho, sem pressão. Para eles era apenas um lunático a vaguear”.
Dissimuladamente, foi fotografando. Eram as primeiras imagens da guerra da Croácia. Nessa noite, eram transmitidas na televisão croata como a prova dos crimes cometidos pela Sérvia. A tragédia chegava ao olhar do mundo.

Nos anos seguintes, Zoran Filipovic iria cobrir todo o conflito dos Balcãs, em cidades como Vukovar, Dubrovnik, Vocin, Vinkovci, Sarajevo, Kutina, Petrinja, Mostar, Slatina. O seu trabalho tornou-se reconhecido internacionalmente e colaborou com publicações como a Le Fígaro Magazine, Paris Match, Life, Die Zeit, GQ, Photo, entre muitas outras. Tornou-se colaborador da prestigiada agência fotográfica Magnum, onde adoptou o pseudónimo “Zoro”, pelo qual é reconhecido pela grande maioria da comunidade do fotojornalística.


A REVELAÇÃO DE UM FOTOJORNALISTA 

Tudo começou num concerto de rock. Em Julho de 1985, o concerto Live Aid, em Londres, monopolizava todas as atenções mediáticas. Zoran meteu na cabeça que ia fazer a sua cobertura fotográfica. Na altura, as acreditações jornalísticas eram feitas sob um rígido regime. A presença era permitida a apenas meia dúzia de fotógrafos, todos oriundos de publicações de prestígio internacional.
“Eu era completamente anónimo. Nem sequer trabalhava como jornalista nessa altura, era professor de fotografia numa escola em Zagrebe”, recorda.


Mas o ímpeto era forte demais. O jovem professor decidiu que ia estar lá. E ia cumprir a tarefa. É robusta, a força de vontade de Zoran Filipovic. “Quando decido fazer algo, ou morro ou faço”.
O croata rumou a Londres. Bateu a imensas portas. Todos lhe perguntavam se tinha bilhetes. Zoran não tinha, estavam esgotados há muito. Retorquia: “já que não há bilhete, deixem-me entrar sem bilhete”. Quando lhe respondiam que não era possível facilitar a entrada sem bilhete, ele argumentava: “Mas eu gostava de comprar um bilhete”. E manteve-se o diálogo, ad nauseam, “like a wrong phonecall”, refere, sorridente. A estratégia de vencer pelo cansaço não funcionou. Zoran prosseguiu a batalha. Continuou na capital britânica, a vaguear e a bater às portas. “Telefonei até ao Harvey Goldsmith [um dos promotores do evento], e cheguei a abordá-lo pessoalmente”.

A persistência tornou-o conhecido naqueles dois ou três dias. “Todos conheciam o Zoran Filipovic, o gajo estranho sem bilhete a tentar infiltrar-se no Live Aid”.
Entretanto, o dia do espectáculo chegou. Continuava sem qualquer resposta dos organizadores. Todos os porteiros e seguranças do estádio o conheciam. “Bati mesmo em todas as portas”. O concerto já tinha começado, a música já se ouvia no exterior. “Uma força estranha apoderou-se de mim, tomei a decisão: Vou entrar!”.


Nas imediações do estádio deambulavam vários candongueiros a vender bilhetes falsos. “Ninguém lhes comprou, pois toda a gente sabia que os bilhetes eram fajutos”. Num último impulso, Zoran dirigiu-se a eles e entregou algumas libras. “Já nem me lembro quanto paguei. Os seguranças viram-me a comprar o bilhete falso. Mas eu ia tão determinado em direcção ao portão principal, que ninguém teve a coragem de me impedir. Abriu-se um corredor humano, que atravessei, sem olhar para trás”.
Juntamente com a sua velhinha Canon A-1, Zoran Filipovic subiu ao palco, lado a lado com os fotógrafos prestigiados, oficialmente acreditados. Nem deu por eles. “Respeitava-os, mas não queria saber. Apenas me interessava usufruir do momento e fazer aquele trabalho”.
E disparo a disparo, Zoran venceu a batalha.


No dia seguinte, foi inundado com telefonemas de colegas, curiosos por saber o que ele ia fazer com as fotografias. As notícias do seu feito tinham chegado a Zagrev. 24 Horas depois, chegaram aos quatro cantos do mundo, de onde choveram propostas. “Até a Reuters se meteu na corrida”, relembra. Mas as ofertas das publicações e agências de prestígio foram sendo sucessivamente recusadas. E quando muitos já pensavam que se tratava de uma estratégia negocial, eis que Zoran Filipovic espantou tudo e todos ao publicar as fotografias na revista Start, uma publicação local de Zagrebe. “Foi uma decisão louca, mas assim foi. Senti que o devia à comunidade local”. E assim começou a sua carreira como fotojornalista. Tinha 26 anos.

 

A GUERRA ATRAVÉS DA LENTE

“Nunca quis ser um fotojornalista de guerra. Simplesmente aconteceu”, diz-me, antes de levar o copo de cerveja aos lábios. Conhecemo-nos num concurso de fotografia no Porto, onde ele fez parte do júri. Hoje, partilhamos cervejas numa esplanada da cidade e falamos sobre jornalismo de guerra. “Guerra… a guerra entrou nas nossas vidas sem pedir permissão. Decidi fazer o que eu fazia melhor: fotografar. Se somos forçados a participar numa tragédia, deve-se tentar retirar algo de bom desse mal. Tentar virar a situação para benefício da humanidade, da verdade, nem que isso significasse a morte”.
Desde então, passaram vários anos desde que a sua objectiva olhou de frente para um confronto bélico. Durante esse período, convites não faltaram: “Afeganistão, Iraque”. Mas Zoro recusou sempre. “Não era a minha guerra. Não perdi família com essa guerra. O meu testemunho não seria tão forte, tão genuíno”.

São muitas as memórias e experiências dos anos de saco nas costas e câmara na mão, a registar a tragédia.
Zoro ainda recorda, vividamente, o americano que lhe apareceu em Zagrebe a pedir ajuda. Queria fotografar a guerra. “Perguntei-lhe se estava preparado. Até mesmo para morrer”. O americano respondeu com um sonoro e lógico “sim”, que vinha do Bornéu, onde tinha fotografado vida selvagem. Porque não haveria de conseguir fazer isto? “Estava a fingir-se duro. Limitei-me a olhar para ele e dizer – ok, eu vou mostrar-te a guerra”. E rumaram a Nustar, uma pequena povoação, a oeste de Vukovar. Quando lá chegaram, durante a travessia de uma “zona de ninguém”, Zoro deixou bem claro que o americano deveria seguir meticulosamente todos os seus passos. Este não gostou e replicou: “Porque raio preciso de fazer isso?”. Zoro dirigiu-se a ele: “Por causa desta mina, desta mina, daquela mina…”, disse, apontando em todas as direcções, a centímetros em redor do repórter. “Ficou gelado de medo. A guerra acabou para ele”.

 

Relembra também um amigo, enfermeiro num hospital de Vukovar, que lhe suplicou que levasse os dois filhos pequenos para fora da zona de conflito. “Deus vai proteger-me. Mas leva-os por favor”. Zoro levou as crianças pelo único percurso possível, entre um campo de milho repleto de minas. Não se viam, mas ouviam-se terríveis explosões em redor. Naquela caminhada pela vida, nem todos davam o passo certo. Nesse mesmo dia, o pai das crianças seria uma das centenas de civis executados no Hospital de Vukovar pelas milícias sérvias.
Em 2007, Zoro reencontrou o miúdo mais jovem, Igor Handic, na altura com “vinte e tal anos”, casado e com dois filhos. “Trabalha no hospital onde o pai morreu”.

Ou até a recordação da passagem de ano mais triste da sua vida, 31 de Dezembro de 1991. Nesse dia, tirou uma das suas fotos mais marcantes, na destruída cidade de Vinkovci, onde uma idosa vagueia sobre a neve, ao lado de um candeeiro de rua derrubado. “Ela vinha perdida em sofrimento. Parecia o último dia da vida dela, da civilização. O dia do juízo final, como se fosse a última mulher do planeta. Nem deu por nós”.

Como é a visão da guerra e da tragédia através da lente? Zoro faz uma pausa antes de responder. Chama o empregado do bar e pede mais duas cervejas. “Não é fácil, Victor!”. Vira-se para mim, olha-me nos olhos. “Não é fácil ver alguém a lutar pela sobrevivência e tirar a câmara do saco e fotografar. Roubar essa miséria deles”.
Mas Zoro descobriu a melhor forma de o fazer. Fruto disso, é convidado frequentemente por universidades para dar palestras e municiar cursos sobre a sua metodologia e ideologia jornalística: “Ter sensibilidade, compaixão e acima de tudo respeito”.
Nos seus cursos, Zoro incita jovens estudantes de jornalismo a se tornarem parte da história, a se meterem na pele daqueles que vão fotografar. “Recentemente, encorajei alunos do México a visitarem algumas zonas humildes e problemáticas da América Latina, dia após dia, sem câmara. Ambientarem-se, darem-se a conhecer, falar com as fontes e ganhar o seu respeito e confiança. E, apenas depois, pedir permissão para tirar as fotos. Ninguém recusou ser fotografado. Fizeram um excelente trabalho”.
Segundo Zoro, sem essa preparação, o fotojornalista é apenas “um turista na tragédia de outrem”, que apenas “arranha a superfície, sem nunca tirar fotos verdadeiramente fortes, do interior do motivo”.

Zoro garante que não é a coragem, o instinto, a técnica ou o equipamento que fazem um bom fotojornalista. “Qualquer um pode ser doido, qualquer um pode comprar uma boa câmara e equipamento sofisticado. É apenas uma ferramenta. Se não tens coração, compaixão ou sensibilidade, não tens nada”. Para ele, o “respeito” é a característica número um do bom profissional.

Garante que já viu muitos fotógrafos a correr “como loucos” para as frentes de guerra. A escavar por sensacionalismo, a lutar pelo exclusivo, a calcular quanto dinheiro as fotos vão render. “Alguns chegam a pagar a soldados para matar, para dispararem os canhões contra uma casa específica, adequada ao enquadramento de uma boa foto. Eu testemunhei isso”.
Muitos morrem nas frentes de batalha. “É esse o preço a pagar quando não se respeita”, afirma Zoro. Assegura que nunca arrisca a vida por nada: “Cada passo que dou na zona de frente tem um propósito. Nunca penso no dinheiro. Estou lá porque sinto que é a minha forma de lutar, de ajudar”.



É o único meio que encontra para “pressionar ou sensibilizar” os governos envolvidos, ou até os “senhores importantes” de Bruxelas e Washington. “Aqueles que, no fundo, podem travar a guerra, qualquer guerra, com um único telefonema. Mas geralmente ignoram o telefone, tentam ignorar tudo”. Zoro debruça o olhar sobre o rio Douro, em silêncio, em busca de uma resposta que lhe parece escapar à memória. Faz um gesto brusco com o rosto, como que despertado por uma reminiscência. Apoia os cotovelos na mesa, aproxima-se, olhos abertos, determinados. “Então tenho essa ideologia, Victor. Essa noção romântica que se mostrar essas fotos das tragédias ao mundo, talvez eles deixem de fazer de conta que não sabiam”. Mais um gole na cerveja. “No fundo, eu queria forçá-los a saber”.

 

© 2020, Victor Melo. All rights reserved.