Devia ter 12 anos. Estava a jogar ao berlinde com oito amigos, num terreno perto de casa dos meus pais, quando alguém tocou no assunto. “Há lá espíritos e são lixados!”, jurava o Nelson. “Há lá frascos com pedaços de pessoas”, acrescentava o Vítor. Referiam-se a uma casa abandonada em ruínas, em Águeda, que ficava ao fundo de uma descida, mesmo ao lado de uma fábrica também abandonada, a Guerra & Cruz (onde hoje existe o Centro de Artes de Águeda).

Quando os alunos saíam do ciclo e desciam ao centro da cidade, passavam por essa fábrica, por isso ela era um terreno fértil para mitos urbanos. Alguns diziam que era habitada por seres chamados “Buzeirões” que, se apanhassem alguém lá dentro, davam-lhe um cachaço com tanta força que a pessoa dava mil voltas em redor de si mesma. Também se dizia que vivia lá um ser que envergava um lençol negro e que capturava pessoas para se alimentar da sua alma. O relato menos sobrenatural, e talvez mais contado, era que um grupo de miúdos se tinha aventurado ao telhado, para retirar uma águia esculpida em barro que estava no topo da fachada principal do edifício. “Uma rapariga pisou uma telha rachada e, enquanto caia, o seu cabelo ficou preso nas telhas e ela ficou careca para sempre”, concluíam, sempre com olhos arregalados e expressões de assombro.

Mas em relação a essa casa, nunca tinha ouvido nenhuma história do género. Era apenas uma casa velha. No entanto, três dos meus amigos continuavam a debitar histórias e mais histórias, cada vez mais embriagados pelo entusiasmo e pela hipérbole.
“Esta foi comigo!”, disse o João. “Uma vez entrei lá e num corredor muito escuro e vi pendurado um quadro com a imagem da Nossa Senhora com o menino Jesus ao colo. Quando voltei a passar por esse corredor, a imagem tinha mudado. Agora era uma bruxa feia como o caralho, com uma faca na mão, a apontá-la para o bebé. Fugi logo dali para fora e nunca mais lá voltei”.

Claro que nesta altura, os restante cinco (onde eu me incluía) que ouviam tudo isto já só pensavam em lá ir. “Ok, mostrem-nos lá onde é isso”. Num ápice, pegamos todos nas bicicletas e arrancamos. Eu, o meu primo Ricardo, o Alexandre, o Diogo, o Lucindo, o Nelson, o Vitor e o João, oito bicicletas BMX a percorrer os quatro quilómetros cheios de descidas íngremes até à cidade. Parecia uma cena dos Goonies.

Quando chegámos, pousámos as bicicletas, saltámos o muro e contornámos o edifício até às traseiras, onde havia algumas árvores cujas copas ocultavam ligeiramente as nossas intenções. Era uma casa de dois andares. O segundo era acessível através de uma escadaria, mas a porta estava trancada. No andar de baixo, uma das janelas estava completamente escancarada. “Este é o único sítio que dá para entrar”, diz o João. Lá dentro só se via escuridão. Só a ideia de atravessar essa fronteira negra já era aterrorizante.

Não me lembro quem foi o primeiro a entrar. Acho que foi o João. Quando chegou a minha vez, assim que pousei ambos os pés no assoalho rachado, senti um calafrio. Havia uma sensação pesada de clandestinidade no ar, algo que nos transmitia que era errado estar ali. Prosseguimos e entrámos no tal corredor. Era ainda mais escuro do que tinha imaginado. Sensivelmente a meio, lá estava o quadro, ligeiramente torto na parede esquerda. “Eu disse-vos”, reafirmou o João.

O corredor levava a uma cozinha que parecia saída de um thriller género “Texas Chainsaw Massacre”. Cheiro nauseabundo, teias de aranha e imensas manchas escuras por todo o lado. “Que raio de manchas são estas?”. Começamos a remexer os armários de madeira apodrecida à procura dos tais frascos. “Olha aqui, olha aqui”. Alguém tinha encontrado um, com algo estranho lá dentro. Dois pequenos amontoados do que parecia ser carne. Ninguém sabia o que raio era aquilo, mas também não nos despertou assim tanta curiosidade. “Onde estão os órgãos humanos?”. “Se calhar estão no andar de cima, por isso é que está trancado!”, alguém respondeu.

Quando voltamos ao corredor, olhamos todos uns para os outros, antes de dar o primeiro passo. Víamos a face lateral da moldura à distância. “Será que a imagem mudou?”. Só o pensamento era aterrador. Lentamente, fomos avançando. Os dois primeiros não olharam, seguiram em frente. Eu era o terceiro. Respirei fundo e virei a cabeça. Quando os meus olhos pousaram na imagem, senti os meus dentes a ranger: “Vai-te lixar ó João, mentiroso do caraças”. Esforçando-se por esboçar surpresa no rosto, abriu os braços, em jeito de desalento. “Pá, eu vim cá de noite. Se calhar só acontece de noite”.

Já cá fora, subimos ao primeiro andar. A porta era de madeira pintada de azul e nem se mexia. O Alexandre chegou-se à frente: “Eu sei abrir fechaduras, vi nos filmes como é que é, quem tem um clip?”. Ninguém tinha, mas após explorar o terreno, encontrámos um bocado de arame. “Também dá”. Dobrou o arame em dois e começou a introduzi-los na fechadura, com ar de entendido. Eu estava mesmo atrás dele, ansioso que aquela aptidão fosse verdadeira. Estavam mais dois ou três nas escadas e os restantes estavam dispersos pelo terreno.

Os minutos passavam e os clicks não surtiam qualquer efeito. A determinada altura, vejo o Diogo lá em baixo, junto à esquina da casa a olhar para algo, noto-lhe a expressão de assombro no rosto e vejo-o a fugir, em pânico, tentando-se esconder nos arbustos das traseiras.
Fixo os olhos na esquina e mil e um pensamentos passam-me pela cabeça. Todos parecem confluir numa única interrogação. “O que será que vem lá que é tão aterrador?”. Alguns dos amigos nem sequer repararam no que acabou de acontecer e continuam entretidos. Os meus olhos estão presos na esquina. Começo a ver uma sombra negra a projetar-se no chão. Afinal são duas. Cada vez maiores. Cada vez mais próximas.

Até que desaparecem ao dobrar da esquina, materializando-se nas fardas de dois guardas da GNR. Aterrorizado, vejo-os a correr na nossa direção, ainda com o Alexandre atrás de mim armado em arrombador profissional. “Antes fossem monstros ou fantasmas”, pensei para mim, “Estamos tramados! Vamos presos!”.

Os guardas reúnem todo o grupo. “O que estão aqui a fazer, hã?”. Ninguém responde. O meu primo arrisca uma resposta. “Esta casa é… é do meu tio!”. Nesse momento, leva um estalo enorme. “A andar daqui para fora!”. Um a um, levamos todos uma estalada desse guarda. O outro, avia-nos apenas com um cachaço. Saímos a correr e agarramos nas bicicletas, que displicentemente tínhamos deixado à frente da casa e nos tinham denunciado. Começamos a pedalar, num misto de adrenalina e alívio. A cara ainda estava vermelha, mas nem nos importávamos com a dor. Naquele instante, tínhamos imaginado cenários bem piores, como os nossos pais a nos irem buscar à esquadra. Estávamos safos. Safámo-nos com um estalo, um cachaço e uma história para contar. Não era um mau preço.

Alguns anos mais tarde, descobri que aquela casa tinha sido de um guarda que há muito se tinha mudado para outra cidade. E que ele tinha sido operado às amígdalas e tinha preservado as mesmas, num frasco com etanol.

Não tenho uma única fotografia daquela casa. Alguns anos depois foi comprada por um vizinho e demolida. Mas ficou-me na memória, pois foi a primeira casa com “fama” de ser assombrada em que eu arrisquei entrar. No entanto, a “casa assombrada” que mais me arrepiava e fascinava o imaginário era outra. Essa, demorei um quarto de século para lá entrar.

Vão poder conhecê-la – e acompanhar-me nessa visita – já este domingo.

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